Máquinas como elas

O debate sobre a possibilidade de criarmos «máquinas como nós» é, como já escrevemos, um dos mais apaixonantes da era tecnológica. Mas, não menos apaixonante, é um debate inevitavelmente paralelo: somos nós máquinas «como elas»? As emoções como reacções químicas, os pensamentos como sinais eléctricos, o amor, o bem-estar como uma descarga de dopamina num mar de fluídos que é o nosso cérebro, o medo como uma descarga de adrenalina, o impulso reprodutivo como a abundância de testosterona, a sociabilidade como função da oxitocina – somos mais do que isso?

A questão é de uma complexidade transcendente, e a resposta, julgamos, ainda se encontra no domínio da especulação. Os neurocientistas são, possivelmente, quem estará mais próximo de encontrá-la. Os engenheiros, em geral, não estão muito preocupados em encontrá-la. Estão preocupados, isso sim, em saber que passos foram dados no sentido da desmistificação do corpo humano. Quanto mais nós soubermos, mais conseguiremos recriar artificialmente.

A medicina é uma das mais antigas ciências. E, no entanto, o estudo do cérebro humano com resultados palpáveis tem meia dúzia de décadas. Só muito recentemente, usando modernas técnicas de imagiologia, se começou a mapear o cérebro humano. Sabe-se hoje, por exemplo, que regiões do cérebro são responsáveis pela linguagem, pela visão, pelo raciocínio, mesmo pelo medo. Quando, além disso, soubermos «como» cada uma destas actividades é realizada, então teremos caminho aberto à criação de mentes artificiais. Mas será que isso é mesmo assim?

O cérebro humano é simplesmente um aglomerado de células, neurónios, isolados do ambiente exterior pelo crânio, mas em contacto com ele através dos cinco órgãos sensoriais. O cérebro só «sabe», portanto, do que se passa cá fora, pela informação que recebe dos cinco sentidos (ou menos, no caso de pessoas com deficiências). Admitindo que tudo o que sabemos e pensamos é no cérebro que se encontra, então este será um grande processador de informação. Acreditam os materialistas que isso é tudo. Basta descobrirmos o(s) «algoritmo(s)» cerebrais, e estará explicada a inteligência. Para os espiritualistas o caso pode tornar-se mais complicado, porque se admitirmos que a inteligência e/ou o funcionamento do cérebro estão dependentes de uma entidade externa (alma), a solução fica, no mínimo, mais distante. No máximo fica comprometida, ou remetida ao foro do místico.

Independentemente da verdadeira e última origem da inteligência, há muita coisa que já sabemos sobre funcionamento do cérebro. Este pode não ser uma simples «máquina» de processar informação, mas não deixa de ser simultaneamente um «lago» de químicos e uma central de processamento de sinais eléctricos. E tanto assim é que a medicina consegue manipulá-lo. Os antidepressivos, por exemplo, são simples doses de químicos que alteram (ou repõem) o equilíbrio químico cerebral e controlam dessa forma as emoções. Mesmo drogas como haxixe, cocaína, «cogumelos mágicos», não são mais do que doses elevadas de químicos que ocorrem naturalmente no cérebro e têm também a faculdade de manipular, dessa forma, as emoções.

Por outro lado, dentro deste mesmo cérebro, os neurónios comunicam, é sabido, através de impulsos eléctricos. Manipulando esses impulsos, manipula-se o pensamento. Uma possível «cura» para a cegueira pode ser a implantação directamente no cérebro de eléctrodos com a capacidade de, estimulando as células certas, reproduzir no cérebro uma imagem visual. O cérebro «vê» directamente, sem «saber» que os estímulos visuais vêm de um circuito electrónico e não olhos naturais. Em resultados preliminares um paciente conseguiu voltar a andar sozinho, e, consta, tocar piano. Mas há outras situações curiosas. Uma equipa de investigadores franceses, por exemplo, fez passar uma ligeira corrente eléctrica na região do cérebro de uma paciente, na região associada com pensamentos depressivos. A reacção foi imediata: a paciente, até aí normal, entrou num estado de profundo desespero. Retirado o estímulo eléctrico, voltou, de imediato também, ao mesmo estado inicial. Recuperada, foi incapaz de explicar o porquê de tão súbito desespero (embora os médicos soubessem).

Significa tudo isto que estamos a poucos passos de entender o funcionamento do cérebro e reproduzi-lo artificialmente? Nem por sombras! Muito dificilmente alguém conseguiria entender o funcionamento de um sofisticado programa informático analisando como funciona o processador. E é essa uma barreira grande, se não mesmo intransponível, para a actual ciência. Poderemos até dissecar o cérebro e vir a entender o seu funcionamento do ponto de vista físico, mas isso não nos dá qualquer garantia de resposta para questões como a origem da consciência ou das emoções.

Uma questão que frequentemente se coloca quando se discutem estes temas prende-se com o mística da própria emoção. Explicar o amor como consequência de uma reacção química, saber que a atracção física, o medo, são descargas de hormonas numa resposta natural do organismo a tentar modelar o nosso comportamento, será que termina com a mística da própria emoção? Felizmente, a resposta aqui é, supõe-se, unânime. Entender o que acontece quando se sente aumenta até o desfruto do próprio sentir. E se alguma coisa muda, é apenas a capacidade de, racionalmente, controlar a emoção. Mas o facto de sermos mais racionais não implica que sejamos menos apaixonados.

Infelizmente, desde o saber tudo isto até reproduzi-lo em mentes artificiais, muitos anos e emoções hão-de passar – sendo nós, ou não, máquinas como elas. Entretanto, aproveitemos especialmente, e com uma consciência renovada, as sensações positivas da dopamina, oxitocina e outras drogas que tais – de preferência as endógenas, que segregamos de forma natural. Naturalmente!




Este artigo pode ser reproduzido total ou parcialmente, desde que seja referido o endereço: http://www.tecnociencia.etikweb.com/Article-24-M-quinas-como-elas.html

Inserido em: 2007-12-01 Última actualização: 2007-12-01

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Inteligência Artificial



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ORIGEM DA INTELIGÊNCIA

Mais nova pesquisa sobre a origem da inteligência parece indicar um novo caminho para as pesquisa sobre o tema. A pesquisador Alirio Freire divulgou recentemente dados parciais de sua pesquisa. Vale a pena conferir o trabalho.
http://origemdainteligencia.blogspot.com
(Por: igor horta)

[Por: @ 2008-03-15, 23:07 | Responder | Imprimir ]