Seja Feliz

Uma das vantagens de estar numa carreira científica é a constante descoberta de coisas novas. Algumas úteis na vida prática, outras são apenas curiosas. Mas eventualmente todas são interessantes, e quase todas contribuem para a construção de uma perspectiva diferente do mundo.

Conhecimento é, sobretudo, liberdade. Saber como as coisas nasceram, o que delas se pode esperar, como funcionam, ou simplesmente compreender porque são assim, leva-nos a vê-las numa outra perspectiva. Em muitos casos, o conhecimento permite alterar a realidade para melhor, e por isso temos hoje uma esperança média de vida superior à dos nossos avós. Quando melhorar não é possível, o simples facto de compreender melhora a convivência com elas e a desfrutá-las de uma forma mais completa. Compreender não é necessariamente aceitar, mas contribui sem dúvida para uma convivência mais pacífica. Não é por acaso que os intelectuais são geralmente pessoas pouco ambiciosas, se medidas pelos standards habituais. É que a ambição do cientista ou intelectual vai normalmente além do aparente.

Alguém (um jornalista) [1] fez recentemente um “estudo” que consistiu em observar os carros estacionados nos parques de estacionamento das faculdades. Como reparou que poucos eram os carros de luxo, ou carros caros, concluiu que, em geral, a comunidade académica é inábil para ganhar dinheiro. Podem ser pessoas inteligentes em determinadas áreas, mas não no que toca a fazer fortuna, segundo o autor do “estudo”. Ora quem conhece o meio certamente há-de discordar. Por um lado, não faltam as empresas que começaram em academias. Logo por aqui se vê que há de facto empresários e capacidade de empreender no meio académico. Por outro lado, motivação é diferente de inabilidade. Pertencer ao meio intelectual não significa que tenha de se ser apenas “remediado”, nem tão pouco ser “abastado” implica ter de o exteriorizar adquirindo um carro de luxo.

O problema, se é que de um problema se trata, prende-se mais com a motivação. A principal motivação da comunidade académica em geral é conhecer, bem como produzir esse mesmo conhecimento. Se tivessem de escolher entre um carro de luxo ou uma viagem de igual valor a um sítio desconhecido, a maior parte dos verdadeiros cientistas escolheria sem dúvida a segunda. Qualquer carro minimamente confortável e seguro para as suas necessidades é uma boa opção. Agora uma viagem é uma oportunidade única de conhecer novas pessoas e lugares. Comprar um carro ou qualquer outro objecto acima das necessidades é só por si uma atitude pouco inteligente, a maior parte das vezes. Mas o conhecimento, esse diz-se que não ocupa lugar.

O pensamento de cientista é normalmente bastante racional. As mensagens publicitárias são mais facilmente filtradas. O consumismo aqui encontra menos eco e um terreno muito menos fértil. Até porque conhecer a estratégia do marketing é meio caminho para não ser enlaçado por ela. Grande parte do orçamento de uma família ocidental típica é gasto em produtos perfeitamente desnecessários, que em menos de 6 meses acabam no lixo. São adquiridos apenas por pressões corporativas da comunicação social, ou por pressões sociais exercidas em consequência dessas mesmas pressões corporativas. A publicidade tenta por todos os meios criar necessidades que não existem, levar as pessoas a adquirir produtos que não necessitam. Estar consciente disso é fundamental para evitá-lo.

Por outro lado, segundo parece, a melhor forma de estar feliz não é adquirir coisas de que não necessitamos, nem ter muito do que quer que seja – nem sequer há uma correlação entre nível de riqueza e felicidade [2]. A resposta está na criatividade. Criar e apreciar coisas novas parece ser a chave da felicidade, e essas coisas podem ser tão elaboradas quanto a imaginação o permitir, ou tão simples como desenhar uma figura na poeira do chão. Crie coisas, seja feliz!

[1] http://machineslikeus.com/news/what-motivates-academics

[2] http://www.ted.com/index.php/talks/mihaly_csikszentmihalyi_on_flow.html

 



Este artigo pode ser reproduzido total ou parcialmente, desde que seja referido o endereço: http://www.tecnociencia.etikweb.com/index.php?article_id=38

Inserido em: 2008-11-17 Última actualização: 2009-01-02

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