Olha o que eu digo, não o que eu faço

Um caso paradigmático é o médico obeso e que fuma, mas exemplos não faltam. O professor que mente depois de ensinar que não se deve mentir. O clérigo que prega as virtudes da vida simples na maior das opulências. A mãe que ensina o filho a não passar o sinal vermelho minutos antes de o fazer. Enfim, os exemplos nunca mais acabam, e a sabedoria popular aprendeu a resumi-los claramente na máxima “Olha o que eu digo, não olhes o que eu faço”.

O caso é tão comum que até parece de somenos importância. Mas quando se repara no que acontece quando um político fala ou age sobre temas como a corrupção é mais difícil ficar indiferente. Na realidade, o problema é semelhante. Apenas a escala mudou, porque quando um médico fuma prejudica-se em primeira mão a ele próprio. Mas quando alguém democraticamente eleito se deixa corromper, então prejudica primeiramente o povo que o elegeu.

No entanto, as próprias massas colectivamente exibem um comportamento semelhante ao individual. Quando se pergunta às pessoas o que acham que deve ser mostrado na TV, invariavelmente dizem que querem temas educativos, ciência, cultura, informação e temas afins. Paradoxalmente (ou nem por isso), o que vende é o “telelixo”. Confrontadas com a hipótese de escolherem individualmente, e tendo a possibilidade de escolher programas de baixa qualidade, a esmagadora maioria dos espectadores prefere novelas, reality shows e afins. Canais que efectivamente mostram programas educativos ou os temas que as pessoas teoricamente preferem têm audiências muito fracas, senão mesmo residuais.

A questão é deveras complicada: parece que as pessoas efectivamente querem uma coisa, mas na realidade escolhem outra diferente quando têm essa possibilidade. Ou seja, para se dar às pessoas aquilo que elas querem, não se pode dar aquilo que elas escolhem – o que é no mínimo uma contradição e no máximo uma grandessíssima trapalhada, porque mesmo quem quer agradar às pessoas fica no dilema de como o conseguir.

Uma consequência deste comportamento é a pouca fiabilidade de alguns inquéritos. Por exemplo, quando se faz um inquérito para aferir a possível aceitação de um novo negócio ou novo produto, a maior parte das vezes obtém resultados muito encorajadores. Os respondentes em geral apoiam a ideia. No entanto, uma vez concretizado o projecto, a maior parte das vezes os resultados reais ficam muito aquém do que se poderia esperar a partir dos resultados do estudo.

As ciências sociais e os meios informáticos têm permitido clarificar esta diferença entre o que as pessoas escolhem e aquilo que exprimem. Para saber o que as pessoas efectivamente escolhem, não basta perguntar-lhes – é preciso analisar os seus comportamentos, monitorizar os consumidores. O telefone foi um contributo importantíssimo. Permite de uma forma rápida estimar, por exemplo, quantos espectadores assistem a determinado programa televisivo. A Internet ainda mais, e de uma forma bastante mais intrusiva. É possível monitorizar quase em tempo real por que sítios os internautas navegam, o conteúdo das mensagens de e-mail que trocam, as conversas que têm, as redes sociais que criam e um conjunto de outros dados e informações que deveriam ser estritamente confidenciais. No entanto, poucos são os que lêem as condições contratuais que aceitam quando abrem uma conta de e-mail gratuita, ou se registam num website novo – aceitam e pronto!

Essa informação, dos comportamentos das massas, das preferências que demonstram, é da maior importância para empresas que as usam com fins comerciais, governos e outras instituições. Quantidades imensas de informações pessoais ficam acumuladas nas bases de dados dos websites mais populares. Todos contribuímos diariamente para isso, ao enviar mensagens de e-mail, navegar na web, conversar online, etc. Usamos a web, logo expomo-nos.

O que será feito com essa informação é ainda uma incógnita. No caso da televisão, é sabido que contribuiu simplesmente para baixar a qualidade. A televisão passou a dar às pessoas aquilo que elas escolhem, não aquilo que elas querem. No caso da Internet, o cenário é bastante mais complexo. A Internet é uma ferramenta bastante mais democrática e interactiva. É esperar para ver!

 



Este artigo pode ser reproduzido total ou parcialmente, desde que seja referido o endereço: http://www.tecnociencia.etikweb.com/index.php?article_id=46

Inserido em: 2009-11-04 Última actualização: 2009-11-04

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