As matrioskas

As matrioskas são bonecas russas, mundialmente famosas por terem uma característica muito peculiar: são colocadas umas dentro das outras. A matrioska maior tem na "barriga" uma menor, que por sua vez contém outra mais pequena, normalmente até seis ou sete gerações. Apenas a matrioska mais pequena não tem nada dentro, pelo seu reduzido tamanho.

É claro que, muito provavelmente, as matrioskas representam a fecundidade, mas o paralelo pode ser feito para o conhecimento, ou mesmo para os problemas do quotidiano: tipicamente, um problema leva a outro problema, que por sua vez pode levar ainda a outros subproblemas, conforme a profundidade da nossa análise.

Antigamente isto não era uma grande dificuldade, porque todo o conhecimento era abarcado pela filosofia. Um filósofo era, então, o amigo do saber, que ansiava compreender o mundo e o seu modo de funcionamento. Era detentor de conhecimentos nas mais diversas áreas, porque tudo era saber.

O desenvolvimento do conhecimento levou, contudo, a uma compartimentação. Esta foi necessária, para melhor organização e facilidade de estudo, mas não deixou de ter efeitos secundários perniciosos.

O facto de se criarem diferentes áreas de conhecimento não é necessariamente mau em si, porque a quantidade de conhecimento é actualmente tão desmedida que não é possível, por exemplo, um curso de letras incluir simultaneamente uma formação sólida em informática, biologia, química, mecânica e uma infinidade de outras áreas. O problema é que, durante muito tempo, se pretendeu que as áreas de conhecimento fossem «estanques». Quando um aluno escolhia humanidades assumia-se que não precisava da mais ténue formação em matemática, ou em biologia, ou em qualquer outra área que não fosse estritamente associada às humanidades. Ainda hoje não é invulgar o “não sei nem quero saber, porque a minha formação é outra. E, no entanto, como as matrioskas, os problemas, sejam de que área for, geram outros problemas, nem sempre da mesma área. Isto para além de outro ponto aqui de crucial importância, que é o facto de sermos homens e mulheres, e não autómatos ou bases de dados de receitas para desempenharem tarefas de rotina. Em vez disso, as empresas, instituições, os países, precisam de pessoas criativas, inventivas, capazes de encontrar respostas sagazes em «qualquer» situação, por inesperada que seja. A realidade não é assim tão compartimentada, tão repartida em áreas do conhecimento como nos daria jeito que fosse.

Hoje em dia o pensamento [e a necessidade] deve ser, portanto, eliminar a estanquicidade das áreas, na medida em que isso seja possível. A um professor não basta saber a matéria, tem de ter capacidade de saber transmiti-la e de associá-la com a realidade que o aluno conhece; a um médico não basta saber tratar doenças, tem de saber falar com o paciente, de compreendê-lo e enquadrá-lo no seu meio; a um engenheiro não basta saber projectar, tem de saber ouvir e interpretar os requisitos do cliente, aconselhar, emitir pareceres, etc. etc.

Hoje em dia não é raro ouvirem-se expressões semelhantes a "quem só sabe informática, nem informática sabe". E “informática” pode, obviamente, ser substituído por outra área qualquer.

Assim, torna-se cada vez mais claro que é necessário, nesta aldeia globalizada, ser continuamente um ávido aprendiz, não de um só ofício mas de mil ofícios, de cultura, de artes, de humanidades, de engenharia, de filosofia...

 

 

Jornal de Oliveira nº 107, 09 de Fevereiro de 2007

 



Este artigo pode ser reproduzido total ou parcialmente, desde que seja referido o endereço: http://www.tecnociencia.etikweb.com/index.php?print=1&article_id=14

Inserido em: 2007-10-18 Última actualização: 2007-12-01

Comentar printer     E-mail   Facebook F

Artigos/ano > Artigos 2007
Ciência geral





http://tecnociencia.etikweb.com/index.php?&article_id=14